4.ª Companhia de Caçadores Especiais - 4 CCE
Angola, 1960-1962


"Operação Cassange"
- Relatos, fotos, mapas, diagramas e relatórios operacionais da 4CCE

"(...) Meditando bem no problema do início do controle da Baixa do Cassange, decidi que a Companhia de Caçadores que deveria sair em primeiro lugar para proceder à pacificação, deveria ser a 4.ª CCE. (...) Foi excelente a decisão.  (...)"

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Excerto reproduzido da obra "Norte de Angola 1961 - A Verdade e os Mitos |  Baixa de Cassange | Aldeia Viçosa / Colua | Caxito / Fazenda Tentativa |
3.ª / 4.ª / 5.ª / 6.ª / 7.ª Companhias de Caçadores Especiais "

por Camilo Rebocho Vaz,
Edição de Autor, Coimbra, 2003. O autor nasceu em Coimbra a 7 de Outubro de 1920, tendo acedido, em Outubro de 1940, ao concurso para o Curso de Infantaria da Escola do Exército.

Em 1943 foi colocado como Oficial do Quadro Permanente no Regimento de Infantaria 10 sediado em Aveiro. Prestou serviço no Batalhão de Caçadores em Lamego em 1960. Com a patente de Major comanda, sob ordens do General Monteiro Libório, o Batalhão Eventual, composto pelas 3.ª, 4.ª e 5.ª CCE, com as quais conduz, em Fevereiro de 1961, a "Operação Cassange".

Desempenhou, assim, funções militares em Angola, de Major a Coronel, tendo alcançado importantes funções governativas como Alto Comissário e Governador-Geral da Província de Angola entre 27 de Outubro de 1966 e 1971 e, entre 1971 e Outubro de 1972, com o mesmo cargo no que passou a denominar-se "Estado de Angola".



Agradecimento especial à Biblioteca-Museu República e Resistência da Câmara Munipical de Lisboa pela reserva da obra para consulta.

por Camilo Rebocho Vaz in "Norte de Angola 1961 - A Verdade e os Mitos", pub. 1993
Transcrição parcial das páginas 27 a 55



"(...)

" A GUERRA "

Para ser-se preciso e concreto é indispensável dizer-se que, para pacificar a Baixa de Cassange, foram postas sob o meu comando 3 Companhias de Caçadores Especiais:

1 - a 3.ª Companhia de Caçadores Especiais, do comando do então capitão Teles-Grilo, sediada em MALANGE, que tinha a vantagem de ser a "proprietária do lugar" onde estava instalada desde há bastante tempo. As suas sub-unidades conheciam razoavelmente  bem toda a mística do ambiente anti-português, que se estava a formar sob o impulso do MPLA; e, melhor ou pior, já tinham reconhecido o terreno onde se previa que poderia haver recontros envolvendo, pelo menos de um lado, pelotões do exército, contra centenas ou milhares de africanos doutrinados por dirigentes do MPLA. Era esta a ideia que se tinha nos meios militares.

Esta 3.ª Companhia já possuía uma história de muitos vexames sofridos e acumulados desde há longo tempo, pois as suas patrulhas eram interceptadas nas estradas e caminhos por grupos de jovens africanos excitados pelo álcool e pela erva-droga, os quais, ao cruzarem-se com as viaturas militares que percorriam os seus circuitos, lhes viravam as costas, dançando e cantando ostensiva e lascivamente ou se viravam mesmo de frente para os militares em atitudes provocantes e depravadas. Rigorosas ordens proibiam contudo os nossos militares de reagir por qualquer forma, mesmo que só através de palavras ou da devolução de insultos.

Era uma política de não dar resposta, de evitar provocações a todo o custo e de impedir a iniciativa no desencadear de incidentes.

Para mim, que o avaliei de perto nessa altura, era o comandante da companhia, Capitão Teles Grilo, o maior ponto fraco da Companhia.

Era um homem sério e valente, sempre pronto a ir à frente dos seus soldados sabendo bem, que podia correr sérios riscos. Era no entanto, militarmente, um homem pouco reflectido. Seria bom noutros tempos, para lutar na batalha de Alcácer-Quibir ou na de Aljubarrota, mas não era a pessoa adequada para, nessa altura, à frente da sua área de comando, averiguar, ponderar e juntar elementos que pudessem controlar uma subversão.

Tinha, no entanto, montada uma larga rede de informações e, segundo ele, estariam implicados na crise, como cooperadores ou insurrectos, desde o chefe da PSP de MALANGE chefe Ricardo, o Director do Colégio de Ensino Secundário, Dr. Terêncio e outras individualidades. Estava em princípio de acordo com as vozes contra-revolucionárias que consideravam o próprio Governador do Distrito , Dr. Júlio Monteiro, como fomentador de actos subversivos. O Governador, natural de Cabo Verde, era um excelente patriota infelizmente já falecido e que muito justamente não acusava ou mandava acusar um africano só por ser africano, e ilibava ou mandava ilibar um europeu só por ser europeu.

No entanto a actuação imposta às patrulhas de ouvir e calar tinha muitos inconvenientes, pois os militares estavam já fartos e saturados, e o que lhes apetecia por vezes era saltar dos carros e distribuir uns bons tabefes acabando com a situação. Mas as ordens cumpriam-se, e os soldados foram somando no íntimo as más influências dessas restrições:

A primeira, à espera, foi terem de engolir as injúrias e arquivarem-nas, no subconsciente ou talvez mesmo no conhecimento pleno;

A segunda, talvez pior, foi a acumulação da vontade de um dia poderem descarregar a tensão, se viessem a receber autorização para ripostar.

Resta acrescentar que esta companhia mantinha o seu armamento em bom estado de conservação, mas a maioria das viaturas não estava operacional. Os patrulhamentos repetidos e prolongados, obrigando as viaturas a percorrer picadas incríveis, cheias de buracos, e de lama e pedras (que só vistas se poderiam apreciar), tinham dado cabo das suspensões, das direcções e em certos casos das caixas de velocidades dos jeeps, jeepões e camions. Portanto, para a execução e entrada em acção da 3.ª Companhia em operações, era indispensável obter imediata autorização do Quartel General para as viaturas serem reparadas urgentemente, não esquecendo a substituição dos pneus , queestavam miseráveis.Foi o que fiz, e,felizmente, veio rapidamente a ordem para que as oficinas de MALANGE iniciassem as reparações necessárias. Isso foi feito e, a curto prazo, a 3.ª Companhia de Caçadores Especiais estava outra vez apta a deslocar-se (nos mesmos ou outros difíceis itinerários).

2. Ora a 4.ª Companhia de Caçadores Especiais, sediada em LUANDA, recebeu ordens em devido tempo para seguir de comboio com todo o seu pessoal e material, incluindo viaturas, para MALANGE. O seu comandante era o então capitão Luis Teixeira de Morais, jovem oficial de Infantaria, inteligente, trabalhador, valente e decidido. Em resumo , era um óptimo oficial em quem acreditavam cegamente todos os seus subordinados; eu próprio também passei a confiar nele, depois de o conhecer. Era o exemplo típico de oficial cheio de energia, sereno e de rara capacidade de organização. Tinha apenas um ponto fraco: não conhecia o distrito de MALANGE. Mas isso não era obstáculo para quem tivesse as cartas topográficas da região e dispusesse de um guia em condições. Porque a solução do problema passou mesmo por ter de se arranjar, para servir de guia, um malangino que conhecia a região como a palma das suas mãos. Era o secretário da Associação Comercial de MALANGE, António Frade que, além de ser homem desembaraçado e valente, falava e compreendia bem os idiomas dos africanos naturais da zona. Além disso, conhecia pessoalmente e era conhecido pelos sobas e os sobetas das várias áreas, onde se previa o desenrolar dos acontecimentos. Foi a melhor solução. Actuou sempre por forma exemplar, e bem merece da Pátria todo o respeito.

Era a guerrilha que começava em ANGOLA, inaugurando a época dos confrontos armados directos, de emboscadas e contra­emboscadas e de ataques para desalojar, de um ou outro lado, forças armadas instaladas.

Como já referi, a 4.ª Companhia de Caçadores Especiais tinha-me sido atribuída de reforço para que, juntamente com a 3.ª Companhia de Caçadores Especiais, se constituísse o Batalhão Eventual de MALANGE. Se necessário receberia ainda outra Companhia, o que aliás veio a acontecer. (A 5.ª CCE do Comando do capitão Rui Mendonça).

Ora a 4.ª Companhia de Caçadores foi transportada de LUANDA para MALANGE com todos os seus meios, num comboio especial que deveria sair para o seu destino às 6 horas da manhã da noite de 3 para 4, isto é, precisamente no dia quatro de Fevereiro. Simplesmente foi muito difícil proceder a esse embarque, circunstância que foi ainda agravada pelo facto de, nessa noite, os homens do MPLA terem atacado a fortaleza do Penedo (vulgo Casa de Reclusão), situada muito próximo do local da estação do Caminho de Ferro do BUNGO, em LUANDA. O tiroteio ouvia-se ainda, quando o comboio iniciou a sua marcha para MALANGE.

Aqui chegou, já noite fechada, ou quase. Esta simultaneidade de acções (sublevação na Baixa de Cassange e ataques isolados em LUANDA) demonstrou logo a identidade das forças subversivas.

Meditando bem no problema do início do controle da Baixa do Cassange, decidi que a Companhia de Caçadores que deveria sair em primeiro lugar para proceder à pacificação, deveria ser a 4.ª CCE. A razão principal residia no facto de ter as viaturas em muito bom estado e poder entrar em operações sem ressentimentos e, portanto, com capacidade para tomar decisões e actuar provocando  o mínimo de perdas de vidas. É que a diferença de poder de fogo das duas partes em confronto era evidente e abismal. E, caso não houvesse ponderação na luta, poderia vir a cavar-se um abismo profundo, criando-se ressentimentos gravíssimos nas populações africanas, que, naturalmente, sendo as mais numerosas, eram no entanto as mais fracas.

Foi excelente a decisão.

Feitos os preparativos na noite 4/5 de Fevereiro, o capitão Morais e a sub-unidade sairam de MALANGE em direcção a QUELA na manhã do dia 5. A ideia era prosseguir depois em função do que viesse a acontecer, mas tendo sempre em conta a missão, que era alcançar MARIMBA e depois TEMBO-ALUMA em direcção à fronteira, onde se identificara uma autoridade nativa conhecida como Soba Izabel, que se dizia estar a orientar a rebelião em contacto com outras autoridades africanas congolesas.

Aliás, a Força Aérea, nos seus voos de reconhecimento, já tinha observado várias vezes concentrações de populações africanas, procedendo aparentemente a cerimónias de doutrinamento e treino militar.

Esse doutrinamento ficou conhecido como o "juramento de Maria" ou "baptizado de Maria", que, afinal, mais não era que o aproveitamento profano da "fé" religiosa mariana, que os africanos tinham.

Nessas cerimónias dirigidas pelos agitadores do MPLA, as populações eram convencidas a receber um pouco de água sobre a cabeça, enquanto juravam matar e aniquilar tudo o que tivesse vida e fosse branco.

Foram forçados a acreditar que, dentro de poucos dias, apareceria uma Santa brilhante no Céu chamada "Maria", que os conduziria à vitória e que, simultaneamente, um terrível vendaval amontoaria terras e pedras, formando um grande monte , salvando-se os negros de um lado e morrendo os brancos do outro. Era preciso abater também toda a criação que tivesse penas ou pêlo branco... Cabras, carneiros, patos, galinhas, etc., teriam de ser mortos e enterrados. Após o vendaval, estes animais ressuscitariam e voltariam à posse dos seus donos anteriores.

Também é importante recordar que lhes era prometido que poderiam e deveriam atacar as autoridades e os militares, com o mínimo de riscos. As balas das armas dos brancos não matavam, pois não tinham chumbo, mas sim água. Maza (água). "Bala do branco é Maza".

Assim levou o MPLA à morte umas boas centenas de negros que, atacando em massa, quer com simples canhangulos ( - arma de fogo de carregar pela boca ), quer com catanas e espingardas de caça, enfrentavam as Forças Armadas as quais, para se defenderem, tinham de despejar as metralhadoras sobre os mais atrevidos. Observando isso, o capitão Morais e o guia António Frade modificaram a táctica a usar na defesa contra esses ataques.

O guia português, que conhecia bem os negros, os seus sobas e sobetas, e que via entre eles, a dirigir os ataques, indivíduos desconhecidos, agitadores, certamente, vindos do CONGO BRAZA ou de LUANDA, recebeu instruções para avisá-los como alvos prioritários.

E António Frade tomou bem conta deles. Eliminados, o resto da multidão continuava a andar e a gritar, mas em poucos minutos desistia e rendia-se.

Mas qual a razão por que os povos africanos da região foram receptivos à subversão?

Para o saber é necessário conhecer primeiro a acção de uma empresa privada denominada COTONANG.

(...)

Mas é altura de prosseguir:

Desceu a 4.ª Companhia para a Baixa de Cassange. Ultrapassou QUELA e, antes de alcançar uma povoação chamada CUNDA-RIA-BASA, logo a seguir a uma curva da estrada, as viaturas tiveram de parar porque havia árvores deitadas sobre o pavimento.

Era a primeira emboscada que o Exército sofria nos nossos tempos.

Tiros de caçadeira, de canhangulo e de uma ou outra arma de bala soaram dos dois lados da estrada. A reacção da 4.ª Companhia foi inicialmente confusa e  hesitante dada a surpresa, e ainda por ser a primeira vez que vivia uma prova de fogo. Era o "baptismo". Um mergulho de emoções fortes para os homens, mistura de medo, raiva e desejo de acabar com a tensão que os passou a dominar.

O disparar das armas foi, pois, como que uma chama, de princípio fraca e duvidosa, mas que, rapidamente, subiu de intensidade, à medida que os próprios companheiros do lado firmavam a sua pontaria e o ritmo dos seus tiros. Bateram fortes os corações quando se ouviram as primeiras ordens de comando que procuravam dar um sentido à aparente desordem.

Tombavam em grupos, os negros atingidos pelas armas automáticas e pelas de repetição. E de repente calou-se a vozearia e a gritaria dos assaltantes que, largando as armas e levantando os braços, mostravam que a breve luta havia terminado. Formou-se um grupo à volta de um primeiro cabo que tinha levado um tiro no peito, à altura do coração. Ouviram-se ordens de cessar fogo dadas pelo capitão Teixeira de Morais e repetidas pelos restantes oficiais e sargentos. Seguiram-se ordens para formar na estrada, junto de cada viatura.

Mandou-se seguidamente que os negros que se entregavam se agrupassem e sentassem à beira da estrada.

A um pelotão foi mandada fazer uma batida na área, recolhendo mortos e feridos dos negros revoltados e recuperando as armas que tinham sido deitadas para o chão.

Fez-se seguidamente o balanço da situação. Resultados:

Da 4.ª Companhia: um 1.º cabo morto instantaneamente com um tiro no coração, e ainda outro 1.º cabo ferido gravemente e que viria também a falecer.

Dos africanos:

     6 mortos;

    21 feridos , 5 dos quais graves;

    78 prisioneiros;

   104 armas diversas, apreendidas.

Fez-se uma mensagem rádio dando conhecimento, ao comando do Batalhão, da ocorrência, e diligerenciaram-se os preparativos para enviar os feridos e os prisioneiros para MALANGE. Igualmente se providenciou para o envio do corpo do 1.º cabo falecido.

Seguidamente, a 4.ª Companhia seguiu para CUNDA-RIA-BASA, que estava deserta e foi reocupada.

Instalaram-se armas nos telhados das casas e montou-se à sua volta a segurança necessária.

Em traços muito rápidos, é esta a história da primeira emboscada a que foi sujeita uma força militar moderna na Baixa de Cassange. O exacto relato.

Passada cerca de uma hora, um avião da Força Aérea sobrevoava a 4.ª Companhia. Um saco, com um pedra dentro, deixou uma mensagem avisando que, a poucas centenas de metros dali, se aproximava outro grupo numeroso de africanos doutrinados com os..propósitos nítidos e aparentes de atacar CUNDA. Ultimaram-se pois os preparativos para a defesa. Homens e armas prontas para o futuro embate . Este não demorou muito. O grupo numeroso apareceu à vista, correndo e gritando. A menos de cem metros os rebeldes pararam e abriram fogo com as armas que transportavam e que , felizmente, fizeram barulho mas não causaram baixas.

A resposta das forças do Exército não se fez também esperar. Firmando agora bem a pontaria e com a serenidade possível, o tiroteio abriu brechas na massa humana que se apresentava e gritava: Maza! Maza! Maza! Rolaram corpos no chão, quebrando o ímpeto do ataque. E repetiu-se uma entrega sem honra, nem fé. Mais africanos mortos, mais feridos, mais prisioneiros. Assim se estabeleceu um padrão -tipo do que viriam a ser os futuros recontros. Não houve mais baixas entre os nossos militares. Nos negros do lado contrário a proporção entre mortos, feridos e prisioneiros, nessa 1.ª fase de luta, seria sempre análoga à do primeiro recontro. Notou-se mesmo uma tendência para baixar o número de mortos e feridos pois que , daí para a frente, os primeiros tiros visavam sempre os cabecilhas que, comandando os grupos atacantes, seguiam à frente, dando saltos e gritos misturados com palavras de incitamento para a luta.

Abatidos esses, o resto era uma multidão sem iniciativa, pois verificava finalmente que as balas não tinham água, mas sim chumbo, e que este feria ou matava mesmo, denunciando a mentira e o logro que lhes tinha sido feito pelos falsos doutrinadores.

O que afinal interessava ao MPLA era colher motivos para notícias de propaganda e fazer barulho em Nova York , na ONU , sobre massacres perpetrados pelas Forças Armadas portuguesas na repressão contra pacíficos cultivadores de algodão... Foi tudo muito bem preparado e orquestrado. E quem caiu na armadilha foi Portugal. Para o MPLA era indiferente que morressem 10, 100 ou 500 negros. Atirá-los para a morte não tinha significado. Essa influência do MPLA ficou transparente nas declarações que alguns dos rebeldes fizeram em autos que foram levados para Nova York por um grande português, o Engenheiro Jorge Jardim, que apareceu em MALANGE para observar e acompanhar durante uns dias os acontecimentos. Viajou de Moçambique por solicitação do Presidente do Conselho, com quem falava por telefone repetidamente. Foi aí que o conheci e comecei a admirar. Era de baixa estatura, sobre o magro e de um dinamismo, patriotismo e entusiasmo que deveriam quanto a mim ser modelo para todos os portugueses. A sua têmpera mergulhava fundo na História Nacional e bem poderia ser uma honrada reincarnação de um português dos anos de quinhentos. O mesmo aconteceu em relação à conduta da Força Aérea. É que, a partir do ataque a CUNDA, entendeu-se que era aconselhável actuar na origem, isto é, actuar na altura em que se realizavam as cerimónias de juramento nas concentrações para o baptismo... O esquema era perfeito.

A Força Aérea deveria sobrevoar as concentrações e largar, ao lado delas, granadas de mão ofensivas (era o que havia) para demonstrar, através do barulho·e deslocação do ar, que as granadas podiam causar prejuízos à saúde ...

Assim se pensou e assim se fez, calculo que pela primeira e única vez no mundo português.

No avião sentava-se, no lugar ao lado do piloto, um homem de infantaria. Foi sempre o capitão Joaquim da Cunha Caetano. Aos pés do infante seguia um saco com granadas de mão quase prontas a largar.

Quando o piloto observava uma concentração sobrevoava-a e dava uma cotovelada ao companheiro. Após uma volta apontava o aparelho de modo a sobrevoar ao lado dela. Nova cotovelada na altura própria e... o granadeiro abria a porta que prendia com o joelho, tirava a cavilha de segurança e, pelo espaço aberto, lançava a granada.

Claro que esta rebentava no solo ou ainda no ar, sem causar quaisquer danos aos negros. Pois logo os doutrinadores aproveitavam para gritar: "Bala dos brancos é maza". As balas são água, não matam... E redrobava o entusiasmo do juramento e o treino militar.

Repetida a operação atrás descrita sobre outras concentrações, com os mesmos efeitos, concluiu-se rapidamente que esta actuação era contraproducente, dado que apenas elevava o moral aos rebeldes, sem influir de modo algum na vontade de se apresentarem às autoridades. Antes pelo contrário. Na continuação da sua marcha para o Norte, a 4.ª Companhia encontrou, a certa altura, paus espetados na estrada com letreiros onde se dizia que aquela terra, dali para a frente, pertencia apenas aos negros. E que tinham cortado de vez com os laços que os ligavam à autoridade dos brancos. Como prova deixavam no chão as suas cadernetas rasgadas, juntamente com os restantes documentos de identificação.

Tinha sido, pois, um falhanço a operação "granada de mão", lançada ao lado das concentrações.

Era de pensar agora noutra solução, para demonstrar que os meios de guerra da época eram efectivamente péssimos para quem lhes tivesse de suportar o impacto.

Foi decidido lançar-se uma granada de mão ofensiva no topo de uma das concentrações, no local onde se colocavam normalmente, durante a cerimónia do baptismo, os doutrinadores do MPLA.

E no dia seguinte assim foi feito.

No avião viveu-se o cerimonial das duas cotoveladas e, àsegunda, o capitão J. da Cunha Caetano lançou a granada depois de lhe tirar a cavilha de segurança. Era uma granada de mão com um pequeno raio de acção e que não causaria certamente grandes estragos. Apenas os suficientes para impressionar os que se estavam a "baptizar".

Era preciso voar muito baixo por duas razões:

- Em primeiro lugar, para que fosse maior a precisão;

- Em segundo lugar, porque a granada, depois de lançada sem cavilha de segurança, e já no ar, soltava a alavanca e, pela força da mola, em 4 segundos explodia, estivesse no ar ou no solo. Rebentou no sítio exacto e o piloto, dando uma volta para a direita, ainda viu os doutrinadores caídos no chão e o banco de madeira e o balde de água que serviam aos baptizados, projectados a vários metros de distância.

Observou ainda que a multidão, dando gritos e agitando os braços no ar, se dispersou em todas as direcções.

Relato o que sei.

Estava encontrada a solução para abrir caminho e pressionar os negros a contactarem de novo com as autoridades administrativas, com vista a fazerem a sua apresentação.

Entretanto em MALANGE, com respeito e grande cerimonial, realizou-se o funeral do 1.º cabo Figueiredo, do 1.º pelotão de caçadores, que viria a ser promovido a furriel a título póstumo.

Presidiu à cerimónia o próprio governador de distrito Dr. Júlio Monteiro, tendo assistido grande multidão, que assim manifestou a sua gratidão pelo sacrifício feito pelo militar em causa. Aliás, veio a falecer, como já disse anteriormente, também por ferimento de bala, um outro 1.º cabo, atingido na mesma primeira emboscada na área de QUELA. Chamava-se Baptista da Costa e pertencia ao pelotão de Acompanhamento. Foi também promovido a título postúmo. De referir que o facto de cada companhia de caçadores ter organicamente um médico (na 4.ª CCE era o Dr. Castro Pereira) e uma secção sanitária teve benéficas consequências, dado que muitos feridos (dos dois lados em luta) , puderam ser tratados a tempo e escapar com vida, apesar de terem sido atingidos durante os recontros.

Mas, em ANGOLA, e particularmente na zona de MALANGE, continuava a viver-se nessa época sob forte tensão.

(...)

Continuou entretanto a 4.ª CEE a sua acção, progredindo em direcção ao Norte, fazendo, nas áreas onde havia recontros, buscas em todas as sanzalas e desarmando alguns elementos dado que existiam ali bons caçadores, que dispunham já de armas relativamente modernas e potentes.

Assim foi feito nas regiões de OUELA e de CUNDA.

Houve depois um recontro noutra povoação, também de nome CUNDA-RIA-BAZA, onde foram feridos os dois filhos do soba, um de nome Joaquim o qual, logo que teve oportunidade, fugiu das prisões improvisadas pelos militares. Outro, o Chiribimbe, foi melhor vigiado, e não conseguiu fugir. O soba do Cunda foi igualmente feito prisioneiro, por se ter provado que fazia causa comum com os agitadores políticos.

Depois deste incidentes, a Companhia atingiu o CAOMBO. Aqui foi informada de que duas colunas de africanos armados progrediam em direcção a Marimba para a atacarem.

A primeira coluna seguia por DANGE-ANGOLA e a segunda por CHIOUITA-CANZAGE.

A 12 de Fevereiro fez-se a integração dessa primeira coluna (no local chamado ZUNGUE), do que resultou um recontro onde foi morto o filho do soba grande MAHOLO (Chiquita) , que era o principal agi­tador local. Seguidamente, a companhia procedeu à reconstrução da ponte sobre o rio CAMBO, que havia sido incendiada pelos assaltantes. De igual forma se procedeu quanto à reparação de outras pontes. Terminados esses trabalhos,foram em busca da segunda coluna, de que resultou o combate de CANZAGE .

Seguidamente, dia 15, novo embate com negros que, nas margens do rio CAMBO, queriam impedir a reconstrução de uma jangada com a utilização da qual, normalmente, se atravessava o rio.

Finalmente, no dia 16, metade da Companhia fez a transposição e chegou a MARIMBA, tendo aprisionado os responsáveis pela amotinação da área. Realizadas as rusgas necessárias,o pessoal que tinha chegado a MARIMBA seguiu logo paraTEMBO-ALUMA, enquanto, por sua vez, o resto da companhia atingia MARIMBA.

A 1.ª coluna teve que perseguir grupos de negros rebeldes que tinham saqueado e destruído TEMBO-ALUMA. Perto da fronteira (em MOSABANA) deu-se um recontro , mas não foi possível apanhar o soba Izabel pois que, a tempo, se tinha passado para o ZAIRE.

Para permitir a livre circulação das viaturas com o pessoal das patrulhas, foi necessário reconstruir vários pontões destruídos ou danificados pelos rebeldes africanos. Finalmente, no dia 22 , o soba do Cunda foi libertado e novamente investido como autoridade tradicional da sua área, dado que, apesar de fazer parte dos sublevados, era um homem com muito prestígio entre os companheiros de etnia (razão explicativa para o MPLA ter feito o seu aliciamento), para além de manifestar um arrependimento que, parecia sincero, de se ter metido na insurreição e já ter sofrido um castigo muito grande com a morte de I um dos seus filhos num dos recontros com as forças do Exército Português. Fez-se, para o efeito, uma pequena cerimónia com o hastear da Bandeira Nacional, a que o povo compareceu.

Urgia agora libertar a povoação de MILANDO, cujos habitantes, incluindo as respectivas autoridades, estavam cercados por negros armados.

Nessa finalidade se trabalhou entre os dias 22 e 27, sendo necessário reconstruir outra ponte que tinha sido destruída com fogo, água e picaretas.

Após essa libertação, construiu-se ali um pequeno campo de aviação para aviões muito ligeiros.

No dia 27 apresentaram-se vários sobas em CUNDA-RIA-BASA, o que foi o sinal do fim próximo dos recontros até que, no dia 1 de Março , o próprio soba grande, Chiquita, também se apresentou e todas as operações militares terminaram. Daí para a frente apenas se realizaram patrulhamentos e contactos com as populações das aldeias que passaram a dizer que reconheciam ter sido influenciadas, no pior sentido, pelos cabecilhas do MPLA que, propositadamente, apareceram entre eles, idos de LUANDA , para que se revoltassem contra as autoridades constituídas. No entanto havia ainda áreas onde a Força Aérea observava concentrações e cerimónias de baptismo. Tratava-se de toda a zona para NE e Leste de MALANGE , entre CULAXINGO e XAMUTEBA. Para que também se pudesse controlar tal região foi-me dada outra companhia de reforço: a 5.ª Companhia de Caçadores Especiais sob o comando do capitão Rui Mendonça.

Quando chegou a MALANGE, e como as viaturas da 3.ª CC Especiais já estivessem reparadas, foi esta úItima mandada para a Baixa de Cassange com a missão de pacificar a 2.ª área em causa. Rapidamente se obteve a tranquilidade social, mas deve dizer-se que a conduta da 3.ª CCE foi muito mais radical do que a da 4.ª CCE. Apercebi-me disso à medida que recebia os rádios do fim da tarde, fazendo-me o relatório da actuação diária. É que o padrão médio das baixas causadas aos negros estava profundamente alterado, dado que deixou de haver feridos e prisioneiros. Os relatórios passaram a falar só em mortos, Felizmente que a segunda área era menor do que a primeira e que, em consequência, as operações militares duraram menos dias, havendo também menor número de recontros.


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" Ponte semi-destruída pelos rebeldes no Norte de Angola  "

in
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ág.ª 51, de "Norte de Angola 1961 - A verdade e os Mitos"
por Camilo Rebocho Vaz, edição de autor, Coimbra, 1993


- CULAXINGO era uma espécie de santuário para os insurrectos. Uma vez alcançado e ocupado, tudo se desmoronou para os negros. Era de novo a paz, mas uma paz que teria de ser uma verdadeira reconstrução material e uma renovação espiritual. Tanto o governo geral como o central assim o entenderam também e, em Agosto de 1961, foi extinta a Junta de Exportação de algodão, com sede em Lisboa, e criado o Instituto do Algodão de ANGOLA. Foi nomeado e tomou posse como Director desse Instituto, o Intendente Dr. Pereira de Matos, funcionário com muito prestígio e muita capacidade intelectual e moral.

Foram expressos na lei os objectivos do Instituto do Algodão de Angola, incluindo a fiscalização da actividade algodoeira, defesa dos produtores mais débeis, luta contra as pragas do algodão, selecção das sementes e controle da sua desinfecção e distribuição, aquisição de máquinas e constituição dos respectivos parques, e, finalmente, contratação de técnicos e àuxlllares de campo.

Por portaria do Governo Geral foram fixados os preços dos mercados e ligada a responsabilidade do Instituto do Algodão de Angola à sua fiscalização e garantia do respeito por todos os actos com que se processava a comercialização.

Mas no 2.º volume deste trabalho falarei detalhadamente na radical modificação dos trabalhos no campo do Instituto de Algodão de  Angola, agora sob a direcção do correcto, dinâmico e esclarecido Engenheiro Correia de Pinho.


 183-DOC-4cce-baixa-cassange-diagrama-rebocho-vaz-1993-BLUE.JPG (246338 bytes)
" Zonas de actuação das 4.ª e 3.ª Companhias de Caçadores Especiais na Baixa de Cassange "
Escala de 1 / 2.000.000

in
pág.ª 53, de "Norte de Angola 1961 - A verdade e os Mitos"
por Camilo Rebocho Vaz, edição de autor, Coimbra, 1993
Mapa original publicado sem coloração >>



De qualquer forma, quero também deixar aqui bem claro que, a meu ver , os males de que enfermavam as práticas da produção e comercialização do algodão nos mercados internos ultramarinos resultavam de pontas de veneno contido nas próprias leis, ou nas disposições que delas derivaram.

É que, no sentido de incentivar a produção, libertando o mercado metropolitano da servidão dos pagamentos em divisas, e também para fomentar as culturas, proporcionando teoricamente aos negros maior riqueza, foi instituída, a favor das autoridades, uma pequena remuneração cujo quantitativo era proporcional às colheitas realizadas nas respectivas áreas administrativas.

Foi nessa armadilha tentadora em que muitos cairam , pois forçaram a prática de condutas atentatórias da sua própria dignidade e ofenderam múltiplas vezes a praxis social. Não viram nem sequer pensaram que , ao mesmo tempo que forçavam as sementeiras de algodão, eles próprios também semeavam razões de querela de que , anos depois,só a força das armas foi capaz de fazer a colheita. Colheita que foi de ervas daninhas e não de puro algodão branco.

A brancura vinha pintalgada de vermelho, tanto o das doutrinas que foram insufladas nos negros, como o do sangue que veio a ser vertido em 1961 e 1975.

No dia 19 de Março de 1961 regressou a 4.ª CCE de MALANGE a LUANDA , tendo tido posteriormente novas e brilhantes intervenções na zona de UCUA e PEDRA VERDE, e actuando mesmo na região de NAMBUANGONGO.

Outro tanto aconteceu à 5.ª CCE, cuja transferência foi feita rapidamente para o CAXITO, no distrito de LUANDA.

Entretanto a 3.ª CCE foi desmembrada, tendo o comando regressado a MALANGE e fracções da mesma ficado a ocupar, em esquema de quadrícula, toda a BAIXA DE CASSANGE.

Nesta fase, conseguiu o capitão Teles Grilo investigar e aprofundar todo o esquema organizativo dos negros, montando um sistema de pesquisa de informações que, infelizmente, passou pela montagem, feita por ordem dele, de um posto, que tinha em vista fazer duros interrogatórios para forçar os prisioneiros à declaração dos factos que  interessava averiguar.

A verdade é que todas as operações militares se passaram e terminaram em menos de 30 dias.

Em formatura solene das forças disponíveis do Batalhão Eventual de MALANGE, o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas de Portugal, na presença também do Chefe do Estado Maior do Exército e do General Comandante da Região Militar de ANGOLA, condecorou com a medalha de prata de serviços distintos com palma, o capitão Teixeira de Morais, pela forma brilhante, enérgica e correcta como conduziu as operações da sua companhia de caçadores especiais, demonstrando por forma notável que as qualidades dos portugueses de antanho ainda estavam por essa altura bem vivas nos portugueses de 1961. Honra aos bravos.

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