4.ª Companhia de Caçadores Especiais - 4 CCE
Angola, 1960-1962


"Operação Cassange"
-  Desmontando o mito do uso de "napalm" pelos meios aéreos



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Pedro Pereira Mateus
Nascido em 1972, cursou economia, foi consultor e tradutor técnico, e é actualmente um profissional na área de Operações e Sistemas e Tecnologias de Informação e na coordenação das equipas e projectos a tal afectos.

Com um passado nas "malhas" da Internet que remonta a 1990 (antes da existência da própria World Wide Web) é um apaixonado pelas novas tecnologias e pelo seu papel na difusão da informação.

É praticante de tiro desportivo de precisão, de pistola e carabina, desde 1999, tendo recebido, em 2010, o título de "Mestre Atirador" por parte da Federação Portuguesa de Tiro.

Desde muito jovem um entusiasta da História e Tecnologia Militar, os laços paternais levam-no a comungar uma forte paixão por África e o desejo de participar na investigação e recolha histórica sobre o período da dita "Guerra do Ultramar".

É, desde 1996, co-autor (e fundador) do site www.4cce.org , dedicado à investigação histórica da 4.a Companhia de Caçadores Especiais, Angola 1960-62.

 

Num mediático e dramaticamente badalado artigo publicado a Agosto de 2002, na Revista "Grande Reportagem", uma foto de um avião da Força Aérea Portuguesa na Guiné, com tanque extra de combustível e bomba convencional, é usada para ilustrar o alegado uso de "napalm" em Angola durante a "Operação Cassange".

Uso de "Napalm" na "Operação Cassange"
 -
Desmontando o Mito

Por Pedro Pereira Mateus
Agosto de 2012


Um artigo de autoria de Francisco Camacho, publicado nas páginas 62 a 77 da edição de Agosto de 2002 da revista "Grande Reportagem", sob o título "Baixa de Cassange - O Massacre que Veio do Céu", retoma um tema recorrente - o alegado uso de "napalm" pelos meios aéreos da Força Aérea Portuguesa (FAP) no decurso da "Operação Cassange" no Norte de Angola de 5 Fevereiro a 19 de Março de 1961.

Em particular, nas páginas 70 e 71, abaixo reproduzidas, recorre o autor a fotos de meios aéreos, de grande destaque, que, alegadamente, permitiriam provar o uso (ou pelo menos a presença) dos meios em questão. As fotos são apresentadas como tendo por fonte o Arquivo da Força Aérea Portuguesa e o Arquivo do Círculo de Leitores.

 

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Páginas 70 e 71 da edição da Revista "Grande Reportagem" de Agosto de 2002

 

A foto
O avião que surge na foto, ao topo da página 71, é um North American F-86 Sabre ("Sabrejet"), modelo F, de fabrico norte-americano. Este modelo de avião entrou ao serviço no Ultramar apenas no Teatro de Operações da Guiné, onde esteve sediado no Aeródromo Base N.º 2 (AB2), Bissalanca (mais tarde designado por BA12), formando, num total de oito aparelhos, o Destacamento 52. Este destacamento chegou à Guiné em 15 de Agosto de 1961 (operação "Atlas", 8 a 15 de Agosto), apenas entrou em operações de combate no Verão de 1963, e viria a ser retirado em finais de Outubro de 1964 (sendo substituidos, mais tarde, já em 1966, pelos Fiat G.91 R/4 "Gina", de fabrico italiano).

 

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Foto na página 71

 

A legenda da foto publicada atesta, superlativamente, o alcance desejado pelo autor do artigo da "Grande Reportagem": "NAPALM. Militares colocam bombas de napalm num avião português. Dois anos depois de chegar a Angola, a Força Aérea utilizava pela primeira vez as célebres bombas incendiárias para reprimir o levantamento dos camponeses" (sic) - pelo que não se trata de um mero detalhe de ilustração, digamos, genérica.

Realça-se que a foto que o autor do artigo decide usar - explicitamente para demonstrar o "uso" de napalm pela FAP na "Operação Cassange", e ocupando mais de um terço da página - mostra um avião que nunca esteve no Teatro de Operações de Angola, e que mesmo a sua chegada à Guiné aconteceu 6 meses (!) depois da "Operação Cassange" ter terminado e, precisamente, com um objectivo de projecção de força na sequência desses incidentes.

 


Foto na Página 70

 

De realçar ainda que na legenda das fotos da página 70, o autor indica explicitamente "(...) os Aviões PV-2 (em cima) foram os bombardeiros utilizados pela Força Aérea no ataque à Baixa de Cassange. (...)" (sic). Curiosamente a única foto, na página precisamente ao lado, que acaba por ser evidenciada para supostamente demonstrar a carga de "napalm" do mesmo, recorre a um avião que nem sequer é um PV-2 (não sendo necessário qualquer nível de conhecimento técnico para os distinguir, dada, além da diferença geral de dimensões, a posição dos motores - num colocado nas asas e noutro no interior da fuselagem, e ainda a forma da cauda).

Ainda assim, poderiam até as cargas a ser colocadas no avião da foto publicada corresponderem ao descrito pelo autor na legenda - mas também assim não é. Na posição exterior, marcada com o número "1" na foto recortada abaixo, está um tanque de combustível extra (tanques auxiliares amovíveis, ditos "drop tanks") de 200 galões (aproximadamente 760 litros). Na posição interior, marcada com o número "2", está um bomba convencional (ditas "general purpose"), de fragmentação/demolição (não de "napalm") - aparentemente de 500 a 750 libras (aproximadamente 227 a 340 quilogramas).

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Recorte e destaque numerado de cargas da foto na página 71
Posição 1 - tanque de combustível extra; Posição 2 - bomba convencional

 

Em suma, o autor recorre a uma foto de um avião que não corresponde à marca ou modelo daquele que o próprio indica como tendo sido usado; usa a foto de um avião que nunca esteve presente no Teatro de Operação de Angola; usa a foto de um avião que apenas esteve presente na Guerra do Ultramar mais de 6 meses depois de finda a "Operação Cassange"; usa uma foto, e destaca-o em legenda, de supostas cargas de bombas "napalm" - que são na verdade um tanque de combustível e uma bomba convencional.

Curiosamente esta mesma foto, como abaixo se reproduz, viria entretanto a ser publicada, correctamente legendada como "F-86 a ser municiado na Guiné". Esta mesma publicação teve lugar sob autoria de Luis Alves de Fraga na obra "A Força Aérea na Guerra em África: Angola, Guiné e Moçambique: 1961-1974". Prefácio, 2004

 

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Foto publicada, em 2004, com legenda correcta,
na obra de Luis Alves de Fraga sobre a FAP na Guerra em África 1961-1974

 

Para um conhecimento histórico sobre as missões da FAP no decurso da "Operação Cassange" recomenda-se vivamente a leitura do artigo de José Manuel Correia, publicado na Revista "Mais Alto", na sua edição de Janeiro-Fevereiro de 2006, n.º 356, Ano XLIV, páginas 40 a 44, sob o título "A Guerra do Algodão, As Primeiras Missões Ofensivas da Força Aérea Portuguesa em África" .

As origens "documentais" do mito
Sendo assumidos e reconhecidos, por todas as fontes e investigadores, a utilização de meios aéreos ofensivos da FAP na "Operação Cassange", tal uso assentou em meios ditos convencionais (metralhadoras e bombas convencionais) e não no uso de bombas de "napalm". Também é reconhecido, por todas as fontes e investigadores, que de forma mais ou menos intensa, teve lugar uso de "napalm" durante a Guerra do Ultramar (em Angola, em Moçambique e, especialmente, na Guiné). Apenas se pretende aqui demonstrar que neste contexto concreto e preciso assim não sucedeu.

Curiosamente uma das fontes mais vezes associada (e citada) à identificação do uso de "napalm" na "Operação Cassange", é um original redigido em língua francesa, de autoria de José Maria Ervedosa, com o título "Les Envoyes des Seigneurs" e no qual é referido, conforme excerto abaixo reproduzido, e em discurso directo do autor, então oficial da FAP, que teria tido lugar um lançamento de "napalm" a partir do avião por si comandado, em Fevereiro de 1962 - ou seja um ano depois (!) da "Operação Cassange". Mais ainda reconhece, em discurso directo, e na primeira página, que os factos que relata directamente dizem respeito ao período de precisamente "663 dias que passou em Angola, de 21 de Abril de 1961 e 12 de Fevereiro de 1963" (sic). Ou seja, mesmo o momento inicial de funções definido pelo autor é posterior ao final da "Operação Cassange" (19 de Março de 1961). As inconsistências são evidentes - mas aparentemente poucos leram efectivamente o documento original do autor.

 

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Texto original de José Maria Ervedosa - "Les Envoyes Des Seigneurs"

 

Muitas vezes citado, e do mesmo autor, é o artigo também publicado num original em língua francesa, com o título "Les Massacres de la Baixa de Cassange". O mesmo foi publicado no n.º 9 da Revista "Africasia" de 16 de Fevereiro de 1970, nas páginas 30 e 31. Curiosamente aqui o autor, José Maria Ervedosa, não cita quaisquer dados directos - i.e., datas e acções suas, mas apenas generalidades acusatórias e trocando, aquando da única citação feita (anónima ainda assim), a expressão "napalm" por "bomba" (quando, efectivamente, não é sequer debatido o uso de bombas convencionais, por todos reconhecido). Importa notar, tal como referido no mesmo, que este artigo foi escrito pelo autor em exílio em Argel, na Argélia, enquanto redigia, precisamente, "Les Envoyes des Seigneurs" acima citado e comentado.

 


Excerto de artigo de J. M. Ervedosa, Revista "Africasia", 1970
- "Les Massacres de la Baixa de Cassange"

 

É por demais reveladora a falta total de dados historicamente relevantes - datas, locais, nomes estão ausentes deste artigo e apenas são descritos uma série de elementos gerais e politicamente acusatórios. Elementos estes que, e levando ao perpetuar do mito até aos nossos dias, outros autores decidiram fazer eco ao longo do tempo - como o veio evidenciar o conceituado investigador John P. Cann no seu artigo " Baixa do Cassange - O catalisador que levou à correcção de um erro ", publicado na Revista Militar n.º 2508 de Janeiro de 2011, em que denota a inclusão deste versão incorrecta por René Pélissier no seu livro "La Colonie du Minotaure: Nationalismes et Revoltes em Angola (1926-1961)" (Orgival-Péllissier, 1979), pág. 418 e repetida por Pélissier e Douglas I. Wheeler no seu livro Angola (Londres, Pall Mall Press, 1971), pág. 174.

Surge assim, desta feita, em 2002, o artigo de Francisco Camacho na Revista "Grande Reportagem" que "acrescenta", como aqui se desmonta, elementos fotográficos totalmente inconsistentes ao mito do uso de "napalm" pela FAP no decurso da "Operação Cassange" em Angola entre Fevereiro e Março de 1961.

 

 

 



Referências

Francisco Camacho
"Baixa de Cassange - O Massacre que Veio do Céu"
Revista "Grande Reportagem", pgs 62 a 77, Agosto de 2002

John P. Cann
"Baixa do Cassange - O catalisador que levou à correcção de um erro"
Revista Militar n.º 2508 de Janeiro de 2011 

José Maria Ervedosa
"Les Massacres de la Baixa de Cassange"
Revista "Africasia", pgs 30 e 31, n.º 9, de 16 de Fevereiro de 1970

José Maria Ervedosa
"Les Envoyes des Seigneurs",
Documentos de e com anotação manuscrita de Mário de Andrade, 1970-71 [estimado]
Arquivos da Fundação Mário Soares, ref. pasta 04337.004.016

António de Araújo e António Duarte Silva
"O uso de Napalm na Guerra Colonial - Quatro Documentos"
Pub. "Relações Internacionais", 2009, n.22, pp. 121-139

António Silva Cardoso
"Angola - Anatomia duma Tragédia" 
Lisboa, Oficina do Livro, 2000

Barbeitos de Sousa.
Revista "Mais Alto", Julho-Agosto de 1989, n.º 260

José Manuel Correia
"A Guerra do Algodão, As Primeiras Missões Ofensivas
da Força Aérea Portuguesa em África
"
Revista "Mais Alto", Janeiro-Fevereiro de 2006, n.º 356, Ano XLIV, páginas 40 a 44

Duncan Curtis.
"North American F-86 Sabre"
The Crowood Press, 2000.

Luis Alves de Fraga.
"A Força Aérea na Guerra em África: Angola, Guiné e Moçambique: 1961-1974"
Prefácio, 2004. ISBN 9728816294

José Cabeleira.
“Trajecto de uma vida entre o mar e o ar – Memórias 1948-83”
Leiria, J. Cabeleira, 2005.

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Fernando Moutinho
Blog "Especialistas da BA12"
http://especialistasdaba12.blogspot.pt , 2012





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